Gregório de Matos (Salvador, 1636 – Recife, 1695)
Foi o maior poeta do barroco brasileiro
Que falta nesta cidade? Verdade.
Que mais por sua desonra? Honra.
Falta mais que se lhe ponha? Vergonha.
O demo a viver se exponha
Por mais que a fama a exalta
Numa cidade onde falta
Verdade, honra e vergonha.
Assim Gregório de Matos abre um poema criticando a Bahia de seu tempo. A sátira política tornou-se uma das vertentes mais conhecidas da sua obra poética. Era o terceiro filho de um fidalgo português, estabelecido no Recôncavo baiano como senhor de engenho e de uma brasileira. Ao contrário dos irmãos mais velhos que não se adequaram aos estudos e se dedicaram a ajudar o pai na fazenda, Gregório recebeu instrução na infância e adolescência e foi enviado para a Universidade de Coimbra onde se bacherelou em direito. Terá sido juiz do Cível, de Crime e de Órfãos em Lisboa durante vários anos. Na Corte portuguesa, envolveu-se na vida literária que deixava o maneirismo camoniano e atingia o barroco, seguindo as influências espanholas de Gôngora e Quevedo. Por essa ocasião, teria também casado e tido acesso ao rei D. Pedro II de quem ganhou simpatia e favores.
"Anjo Bento"
Destes que campam no mundo
Sem ter engenho profundo
E, entre gabos dos amigos,
Os vemos em papafigos
Sem tempestade, nem vento:
Anjo Bento!
De quem com letras secretas
Tudo o que alcança é por tretas,
Baculejando sem pejo,
Por matar o seu desejo,
Desde a manhã té à tarde:
Deus me guarde!
Do que passeia farfante,
Muito prezado de amante,
Por fora luvas, galões,
Insígnias, armas, bastões,
Por dentro pão bolorento:
Anjo Bento!
Destes beatos fingidos,
Cabisbaixos, encolhidos,
Por dentro fatais maganos,
Sendo nas caras uns Janos:
Que fazem do vício alarde:
Deus me guarde!
Que vejamos teso andar
Quem mal sabe engatinhar,
Muito inteiro e presumido,
Ficando o outro abatido
Com maior merecimento:
Anjo Bento!
Destes avaros mofinos,
Que põem na mesa pepinos,
De toda a iguaria isenta,
Com seu limão e pimenta,
Porque diz que o queima e arde:
Deus me guarde!"
Recebido por e-mail, Autor da súmula não identificado
Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.
'As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana;
que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade.
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade, o essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!
Mário de Andrade
Para saber mais sobre o Autor, ver http://www.releituras.com/marioandrade_bio.asp
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Cardeal Gonzaga, como quem acorda, os olhos cheios de brilho, a expressão transfigurada
Em como é diferente o amor em Portugal!
Nem a frase subtil, nem o duelo sangrento...
É o amor coração, é o amor sentimento.
Uma lágrima... Um beijo... Uns sinos a tocar...
Um parzinho que ajoelha e que vai se casar.
Tão simples tudo! Amor, que de rosas se enflora:
Em sendo triste canta, em sendo alegre chora!
O amor simplicidade, o amor delicadeza...
Ai, como sabe amar, a gente portuguesa!
Tecer de Sol um beijo, e, desde tenra idade,
Ir nesse beijo unido o amor com amizade,
Numa ternura casta e numa estima sã,
Sem saber distinguir entre a noiva e a irmã...
Fazer vibrar o amor em cordas misteriosas,
Como se todo o amor fosse um amor somente...
Ai como é diferente!
Ai como é diferente!
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A ceia dos Cardeais
Júlio Dantas (1876/1962)
Fonte: Wikipédia (enciclopédia livre)
Será que os portugueses ainda amam assim,
Com o coração, tão pura, tão docemente...?
-Talvez aqueles que ainda guardam no sangue a cepa lusa
E na memória a maneira de ser português.
- Alguns..., talvez!
Maria Eduarda Fagundes
(*)
Palavras em linha recta
Ditas de forma directa
E outras em linha quebrada
Se urge forma mais velada.
Palavras em quadrados
Ou dizeres enjaulados,
Outras em circunferência
Proferidas com paciência.
Palavras em tracejado
Ditas em tom engasgado,
E palavras em diagonal,
Que chegam ao ponto final
Por um atalho bem curtinho,
Nem sempre o melhor caminho.
Palavras em semi-círculos,
Que põem corações aos pulos
E deixam tudo em aberto,
Trocando o certo pelo incerto.
Ângulos de palavras agudas
Ou de outras mais obtusas,
Vindas de mentes confusas
E bocas mais valia mudas.
Triângulos de muitos fonemas,
Palavras com estratagemas,
Com um dos lados ignorado,
Se não fôr mesmo enganado.
Palavras paralelas proferidas,
Que nem sempre são ouvidas.
Raios de palavrões que se gritam
E que nem sempre se evitam.
Um “quero dar-te uma palavrinha”,
Secante em forma mesquinha.
Palavras sobre um eixo cruzadas
Debaixo dos mesmos tectos,
Palavras só mesmo acertadas
Se a soma do quadrado dos catetos
Fôr igual à soma do quadrado da hipotenusa,
Ou quando as pessoas estiverem caladas,
Ou a lógica não fôr uma intrusa.
Helena Salazar Antunes
Bendito o que, na terra, o fogo fez, e o teto;
E o que uniu a charrua ao boi paciente e amigo;
E o que encontrou a enxada; e o que, do chão abjecto,
Fez, aos beijos do sol , o ouro brotar do trigo;
E o que o ferro forjou, e o piedoso arquitecto
Que ideou, depois do berço e do lar, o jazigo;
E o que os fios urdiu; e o que achou o alfabeto;
E o que deu uma esmola ao primeiro mendigo;
E o que soltou ao mar a quilha, e ao vento o pano;
E o que inventou o canto; e o que criou a lira;
E o que domou o raio; e o que alçou o aeroplano...
Mas bendito, entre os mais, o que, no dó profundo,
Descobriu a Esperança, a divina mentira,
Dando ao homem o dom de suportar o mundo!
Olavo Bilac
Olavo Brás Martins Bilac (Rio de Janeiro, 16 de Dezembro de 1865 — Rio de Janeiro, 28 de Dezembro de 1918) foi um jornalista e poeta brasileiro, membro fundador da Academia Brasileira de Letras. Criou a cadeira 15, cujo patrono é Gonçalves Dias.
Conhecido por sua atenção a literatura infantil e, principalmente, pela participação cívica, era republicano e nacionalista; também era defensor do serviço militar obrigatório. Bilac escreveu a letra do Hino à Bandeira e fez oposição ao governo de Floriano Peixoto. Foi membro-fundador da Academia Brasileira de Letras, em 1896. Em 1907, foi eleito “príncipe dos poetas brasileiros”, pela revista Fon-Fon. Bilac, autor de alguns dos mais populares poemas brasileiros, é considerado o mais importante de nossos poetas parnasianos. No entanto, para o crítico João Adolfo Hansen, "o mestre do passado, do livro de poesia escrito longe do estéril turbilhão da rua, não será o mesmo mestre do presente, do jornal, a cronicar assuntos cotidianos do Rio, prontinho para intervenções de Agache e a erradicação da plebe rude, expulsa do centro para os morros"
A Pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos económicos e políticos: é o idioma criado ou herdado pelo povo. |
(*)
Silêncios de paz, silêncios constrangedores,
silêncios úteis na altura exacta,
silêncios ensurdecedores
de um ruído que mata.
Silêncios de cumplicidade,
ausências de palavra,
plenos de sentimento e verdade
que no fundo das mentes lavra.
Silêncios de solidão,
companheiros da escuridão.
Silêncios de luz e cor,
Repletos de paz e amor.
Silêncios de apatia ou ignorância,
silêncios de ironia ou arrogância.
Silêncios de melancolia
de vidas já passadas,
numa doce melodia
De memórias já usadas.
Silêncios de sonhos futuros,
esperança de dias não duros.
Silêncios maus, silêncios bons,
silêncios sós e acompanhados,
silêncios em todos os tons,
silêncios nem sempre dourados.
Silêncios transparentes ou indecifráveis,
Silêncios planeados ou incontroláveis,
Silêncios breves, longos, sem fim,
Tantos silêncios enfim...
Silêncios em tão diferentes momentos,
Quão diferentes são os sentimentos.
Silêncios que não falam mas significam,
O que mil palavras não explicam.
Helena Salazar Antunes
Encontrei uma preta
Que estava a chorar,
Pedi-lhe uma lágrima
Para a analisar.
Recolhi a lágrima
Com todo o cuidado
Num tubo de ensaio
Bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
Do outro e de frente:
Tinha um ar de gota
Muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
As bases e os sais,
As drogas usadas
Em casos que tais.
Ensaiei a frio,
Experimentei ao lume,
De todas as vezes
Deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
Nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
E cloreto de sódio.
António Gedeão
Afirmando-se como um dos mais brilhantes e talentosos criadores lusófonos do século XX, Rómulo de Carvalho/António Gedeão, respectivamente, o professor, pedagogo e historiador da ciência, e o seu alter-ego literário, atravessou todas as convulsões e acontecimentos marcantes do nosso século, que se reflectiram no formar-se de um espírito extremamente marcado pelo cepticismo e pela ironia, sempre presentes nos seus poemas. Licenciado em Ciências Físico-Químicas pela Universidade do Porto em 1931, traduziu como ninguém, a ciência para os leigos, desvendando segredos científicos com a mesma simplicidade com que os exemplificava. Lisboeta toda uma vida, uniu de forma exemplar, através da sua obra, a ciência e a poesia, a vida e o sonho. Apesar de só aos 50 anos ter decidido publicar o seu primeiro livro de poesia, inaugurando assim uma carreira que se afirmou por si própria na cultura portuguesa, tornou-se uma figura de referência incontornável no imaginário colectivo do povo português, principalmente para toda a geração da "Pedra Filosofal". |
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Poucos meses após ter celebrado o seu 90º aniversário, assinalado pela homenagem que lhe foi prestada pelo Ministério de Ciência e de Tecnologia, a sua morte em 19 de Fevereiro 1997, deixa-nos um legado para o futuro, numa sociedade cada vez mais global, onde a união entre Ciências e Humanidades se torna cada vez mais uma necessidade premente.
http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/antonio_gedeao/index.html
Os livros da biblioteca particular de Fernando Pessoa estão disponíveis gratuitamente on-line no site da Casa Fernando Pessoa.
Até agora, só uma visita à Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, permitia consultar este acervo que é "riquíssimo", mas com o site, bilingue (português e inglês), é possível consultar, página a página, os cerca de 1140 volumes da biblioteca, mais as anotações – incluindo poemas – que Fernando Pessoa foi fazendo nas páginas dos livros.
Navegue em http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt e delicie-se.
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos, 15-1-1928
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