DISCURSO EM 3 DE SETEMBRO DE 1968 NA POSSE DE SÓCIO DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SÃO PAULO, PELO CÔNSUL-GERAL DE PORTUGAL DR. LUÍS SOARES DE OLIVEIRA TENDO COMO PATRONO RICARDO SEVERO
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Durante V séculos, o árabe assenhoreia-se de quase todo o território lusitano submetendo os povos à sua força e à sua cultura superiores. Comenta Ricardo Severo: «A par e passo que o domínio árabe vai diminuindo, surge desde os confins do Algarve até às fronteiras da Galiza um povo possuindo o mesmo modo de sentir e de pensar a mesma língua, conservando a toponímia pré-romana e ligado aos seus castros, aos seus dólmenes, às suas fontes, por uma infinidade de tradições que, sem dúvida, tem raízes pré-romanas». A solidez e coesão deste povo permite-lhe resistir a todos os cataclismos históricos e, ultrapassados estes, chamar a si, assimilando, os elementos humanos e culturais do inimigo da véspera. A nação ilustrou-se de leis com os romanos; com os árabes adoça os seus costumes e povoa-se de lendas que evidenciam o fascínio que exerceu sobre o montanhês a beleza da mulher moura. Manifestaram-se assim os primeiros sintomas de exogamia e endocultura, binário que iria impor a feição única da nossa história.
Estava revisto o erro histórico de Herculano que negara relações de afinidade entre a Nação actual e essas tribos de lusitanos sitos ao sul do Douro ao afirmar que «Portugal nascido num ângulo da Galiza constituído sem atenção às divisões políticas anteriores, dilatando-se pelo território do Gharb sarraceno, é uma Nação inteiramente moderna».
Ricardo Severo não pretendeu construir uma doutrina sobre a formação da nacionalidade. Na sua humildade de mesteiral, limitou-se a reunir subsídios para a formação dessa doutrina. Ele próprio reconheceu a necessidade do trabalho de uma equipa. Com efeito, do seu montanhês até à formação cultural da Nação portuguesa que se apresenta consolidada em 1385, há um longo caminho a estudar. As pesquisas do seu companheiro Alberto Sampaio sobre a formação das póvoas no litoral português, fenómeno este inteiramente moderno e que marcou a trasladação do eixo nacional da montanha para a orla marítima, fixando aí o centro de gravidade do novo português, tem uma relevância considerável para a compreensão e caracterização do génio da raça.
A grande contribuição de Ricardo Severo como historiador consiste, a meu ver, na sua aceitação do maravilhoso lado a lado com o documento real, como elemento de compreensão da verdadeira alma do povo. Definitivos ou incompletos, os estudos de Severo muito contribuíram para o ressurgimento do Portugal contemporâneo. A Nação reencontrou o fio da sua história e reintegrou-se no sentido da sua tradição. Esqueceu e superou os estádios mórbidos que durante três séculos dominaram a sua vivência com menor ou maior intensidade, sob influências estranhas e perniciosas que se imiscuíram no organismo social em consequência de grandes traumatismos políticos. Restabelecida a ordem nas «tribos lusitanas», com o advento de um Estado forte e de orientação nacional, reposta na sua genuinidade a tradição do povo, a Nação encontrou de novo coesão e segurança no seu caminhar, certeza dos seus valores e confiança na sua capacidade para cumprir um destino histórico singular e que, cada dia, se revela mais meritório num mundo incapaz de partilhar experiências humanas ou assimilar etnias, num mundo cada vez mais carente de um elo de fraternidade entre as raças e os povos.
É a Pátria com que Ricardo Severo sonhou. Escutemos um passo da sua oração aos portugueses em 1914: «Nós recitamos os cantos dos Lusíadas com ênfase, como o Evangelho de uma raça, a epopeia heróica dos seus feitos e das suas virtudes, imortalizados nesse bronze imarcecível, símbolo imorredoiro de um povo que foi e será grande. Se, por vezes, a saudade nos invade a alma e, em plangente oração, voltamo-nos para a imagem da Pátria, sonhamos, sonhamos nós – os da modesta grey de Portugal – com uma era de renascimento da Pátria dos Lusíadas. Que importa? Prosseguiremos nosso sonho!».
(continua)
Luís Soares de Oliveira
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